Livros que sussurram memórias…

Recostada na cama, lendo o encanto de Jacinto pela Serra, pela Natureza, fecho os olhos e transporto-me para o meu sítio favorito. E nessa contemplação recorro a uma memória particular. Estamos sentados nos pedregulhos do lado sul do rio, aquecidos pelo sol forte que brilha e enregelados pela água fria que nos molha os pés descalços. Reflicto sobre esta memória: tu não estás sentado, estás deitado. Estás sobre o meu colo, estás repousado sobre mim. E dormes. Um sono leve, um sono breve. E há todo um encanto, toda uma paz, toda uma harmonia… Estamos tão bem, em tamanho silêncio e sintonia.
Fecho o livro sobre o colo e rebenta o açude que há em mim. O meu rosto é água que corre livre, por fim tão livre!… E essa água leva pela frente tudo quanto encontra esvaziando-me com brutalidade e dureza. Perco o ar por instantes…
E quando passa o pior… enxugo o melhor que consigo. Calço umas meias mais grossas nos pés gelados. Puxo as cobertas da cama até ao pescoço. E volto à Serra com o Jacinto e o Zé Fernandes. E sereno, nesse passeio, enquanto o corpo entra no torpor do sono…

“A Cidade e as Serras”, de Eça de Queirós

(des)pertença

Estou na cozinha e… Espera, reformula. Estou na cozinha dos meus pais e o frigorífico tem um zumbido novo. Não é novo para eles, mas é novo para mim. E isso incomoda-me mais do que devia. Não é do barulho, irritante e constante, é do choque que a minha casa – digo, a casa dos meus pais – continua em frente e muda, mesmo sem mim. Da sensação de (des)pertença.
Abro um armário à procura de uma coisa que já não está ali, foi mudada e arrumada noutro lado e de outra maneira. Se quando entro sinto que estou em casa, porque é que a casa está estranha e diferente? Quando é que mudaram coisas, que eu não percebi? Estive assim tanto tempo sem voltar aqui?

Há tempos, o meu quarto (o da minha casa) tinha um cheiro novo. Espera, reformula. O nosso quarto. O quarto dele?
O quarto cheirava a armazém, e lembro-me de pensar no cheiro de livros novos. Sabia que aquele cheiro era do tapete novo… mas lamentava o livro que, tendo acabado de receber e devorado, já tinha emprestado a quem ficou tão feliz de o ver quanto eu. Aquele cheiro fez-me sentir falta desse livro novo, da disponibilidade das suas páginas para me consolar com o seu aroma cheio de promessas.

Há mais ilusões.
Há as manhãs em que ele, estando a dormir profundamente, desperta e levanta-se, quando eu ainda mal me tinha deitado. E sinto réplicas daquela avalanche que me destrói. O Outono e o Inverno parecem mais duros do que o Verão. Por mim, preferia termos apenas Primavera. Procuro criar esse ritmo dentro de mim mas sinto-me presa nesse deslizamento da montanha.

À minha volta, na “minha” casa, tento criar espaço e pontos de ancoragem que me façam não precisar de usar aspas. Já sinto dentro de mim vislumbres desse sentimento de pertença, de uma casa, de um ninho, de um refúgio. Penso nos animais que usam o seu cheiro para marcar território. Como sou profundamente visual, espalho totens por todo o lado. E descubro – com surpresa – que resulta melhor quando o fazemos juntos. Aproprio-me do espaço quando o faço com ele. O processo é doloroso para mim, penoso para ele. Mas os resultados provocam-me carícias no âmago. Para mim, pendurar aquele espelho faz com que aquele pedacinho de parede passe (finalmente) a ser realmente nosso. (Finalmente).

E descubro que tenho ânsia por mais e mais e mais. Não me consigo conter. Porque é que tudo e todos me dizem que tenho de me conter? Sinto-me numa maré viva, a encher e a vazar, aceleradamente. Busco esses pontos de ancoragem para me agarrar, para sossegar, mas por mais que apalpe não consigo agarrar nenhum. Desapareceram? Estão submersos? Foram retirados, arrancados, destruídos?

Aninho-me embrulhada numa manta e mantenho-me anestesiada com tudo quanto me distraia. Só mais um pedacinho, preciso manter-me assim só mais um bocadinho…

Tenho…

Tenho um aperto no peito e duas músicas na cabeça.
Tenho um dilúvio a forçar as costuras que trago dentro de mim e uma barragem prestes a dar de si.
E depois há as vozes.
E ele.

E repete.

Tenho uma pressão no peito e duas melodias melancólicas na cabeça.
Tenho um monstro a forçar as costuras que trago dentro de mim – e que não consigo pintar de ouro – e uma barragem de lágrimas à beira do limite.
E depois há as vozes.
E ele.

E repete.

Tenho um desespero a invadir-me o peito e ruídos em várias línguas na cabeça.
Tenho um descontrolo inexplicável a forçar as costuras que trago dentro de mim – às quais ponho mais uma camada de maquilhagem, para disfarçar – e um tremor nas mãos irrequietas.
E depois há vozes.
E ele.

Que me segura e tenta selecionar os pensamentos que são para ficar e para deixar ir.
E há culpa. E há dor. E há sofrimento por antecipação. E há ansiedade. E há frustração. E há desilusão. E há falha. E há incapacidade.

E há a luta de evocar todas as graças e esperar sentir a imensidão da gratidão por tudo – e que é quase tudo na minha vida – o que é bom, sagrado, positivo e maravilhoso.

E repete.

Agitação

Procurar abrigo naquele espaço nosso. É disto que se trata. De não ser carne nem peixe, e precisar de ser algo. Precisar de ter posse sobre. E de controlar o tempo, ou poder tirar horas infinitas num vácuo qualquer, sem prejuízo para ninguém, com permissão para estar a não fazer nada. Permitir! Corrijo, afinal é disto que se trata. De permitir ter necessidades próprias, de precisar de segurança e ajuda, disso ser uma aprendizagem difícil e estranha e libertadora. E desesperante. Crescer, é disto que se trata. De como é bom e maravilhoso, e de como não é bom nem maravilhoso. Bolas, voltei ao estado indefinido. Recomeça, Vera, abandona o meio. Decide-te, faz uma escolha, fixa uma posição. É disto que se trata, este medo de escolher errado. Este esperar até à última. Da pressão e do coração apertado, acelerado, acabrunhado. Talvez seja da idade, que disto se trata. Dos sinais do corpo para abrandar e cuidar e destressar. Das dores, das tensões, dos bloqueios, das irregularidades, do sistema nervoso e do sistema imunitário. Da imprevisibilidade da meteorologia.

De saudades do que ainda não aconteceu. De querer pular a fase do ‘a acontecer’ para o ‘feito’. Afinal é disto que se trata – de que já devo horas à cama. Mas a agitação não me deixa parar, não me deixa acalmar. Respira, Vera, copo meio cheio. ‘Eu estou bem, e o mundo também.’

Ou há-de ficar.

É só uma pequena agitação.

Aqui

Ecoa-me numa constante: “Esta é a noite!…”

Conheço esta sensação de urgência em escrever, procuro de onde surge, o que a causa, tento racionalizar a emoção, a dor, a alegria… Tudo voa tão rápido. E em mim a escrita faz o seu papel de varrimento mental, libertando o coração (e as lágrimas) que precisam de liberdade. Quão complexo é viver, que me traz a imensidão da felicidade e a profundeza da tristeza, num ímpeto único? Aprendendo a se não anular, renunciam ao domínio, co-existindo para prejuízo de uma e necessidade da outra.

“Esta é a no-oite!…”

E tendo tanto, mas tanto que fazer, encontro-me parada sem encontrar sentido no fazer, como se fossem vãs todas as minhas preocupações e angústias, restando somente a preocupação e a angústia. Mergulho a letargia em que forma de arte? Porque tardam tanto as lágrimas, que me assaltam o ânimo, a partir para o meu rosto?

“Esta é a no-o-oite!…”

Faltam-me os sinos, a carpete, o silêncio, a vigília da noite, o chá quente, o cheiro das velas (espera, que este posso resolver já…), a harmonia familiar e a cumplicidade da irmandade. Enquanto me invadem imagens de um futuro próximo, que por hábito continua a mudar de rosto, e oiço já o fulgor da festa de bairro e de pessoas errantes em demanda, e o meu coração é já ninho de amor e pássaro que migra ao encontro da Primavera.

Só que hoje estou aqui. Aqui. A perceber como se vivem os momentos. Aqui.

Pensamentos & Cartas de Amor

Penso muitas vezes em abraçar-te.
Que se estivesse aqui, agora, te dava aquele abraço em que os meus braços te circundam a cintura e os teus braços me envolvem os ombros; em que encaixo o rosto num espaço que existe perto da clavícula no cimo do teu peito, e tu de pescoço dobrado encostas o rosto ao cimo da minha cabeça.
Aquele abraço em que ambos fechamos os olhos e inspiramos o outro – sabes?

Enquanto penso que se te visse agora dávamos um abraço desses, faço o esforço de recordar quando foi a última vez que te apertei assim…
Talvez este abraço só exista dentro de mim – sabes?

Tal como a minha mão entrelaça na tua sozinha, para nos descobrirmos já de mão dada e perceber porque me sentia tão completa – sabes? 

E desconfio que não te escrevo tantas cartas de amor quanto as que imagino-me a escrever-te por pura vergonha – acreditas?

“Nunca o saberei agradecer”

Há um turbilhão. Procuro dentro de mim o abrigo, cega às apalpadelas, e parece que me esqueci de o construir. Uma tempestade ameaça aproximar-se, e eu em desespero… não me preparei a tempo. Quando sabia que vinha aí.

Não sei se me hei-de zangar ou se continuo com medo. Se destruo para construir ou se deixo tudo tal como está. Não sei o que se passa aqui – dentro ou fora.
E não durmo. Mal existo.

Acendo uma vela e trago-O para perto de mim. Invoco. Rezo duas vezes. Passo a mão pelo rosto, muitas vezes, com o choro preso no fundo da garganta – choro que não sei de onde vem, nem porque não vem.

“Quantas vezes bate o coração / Sem nunca depender de mim”?

Coloco o cântico em loop. E preparo as galochas, pelo sim pelo não.
Amen

Cântaros de chuva e amor

Só sei falar de coração. “Coração é piegas, careta; coração tá fora de moda”*.
Prognóstico concluído.

Nessa casa em que construo história e conquisto espaços, por onde espalho memórias e cheiros e risos, fico só pela primeira vez. Abro janelas e puxo cortinas, dou-lhe ar para respirar e vejo um céu cinza longe mas a caminho que conscientemente ignoro. Isso impede a tempestade? A precipitação urgente da chuva?

(Não, mas isso todos sabemos.)

Corro pela casa divisão a divisão a fechar janelas e portas e portadas, e encosto a mão ao vidro que gela da chuva e vibra do vento. E ouço as descobertas do meu corpo, sem querer saber dos seus significados secretos ou do efeito do bater de asas das borboletas que me enchem o âmago. Experimento esse estado de tempo estagnado, parado, imutável. Isso impede o resto do mundo de prosseguir? De viver e sobreviver?

(Não, mas isso todos sabemos.)

O relógio revira os olhos e tic-tac tic-tac. Não sei à quanto tempo partiu ou quando voltará, mas esta dependência não me traz ansiedade (já não; por enquanto não). O meu coração tem morada fixa no meu peito, mas prefere viver na casa de férias que existe nele, que foi concebida e criada para o/me albergar. Os olhos dele dão-me garantias vitalícias e solto um riso que o faz sempre perguntar “O que foi?” sabendo que me faz feliz.
Deixo de ouvir e ver os pássaros que pousam no jardim. Estarão escondidos nas árvores? Será que também me espreitam ou procuram? Será que se querem abrigar aqui comigo?

(Será que alguém sabe?)

* A Banda Mais Bonita da Cidade – Potinhos

Ruídos

Organizo a agenda e penso numa amiga que me preocupa, por isso combino uma conversa com a desculpa de uma boleia para casa.

Saio do trabalho para ir ter ao dela, mas como ainda tenho dez minutos de espera entro numa capela lindíssima. Meia dúzia de pessoas reza ou espera pela confissão, paira o sossego no ar e eu sento-me, depois ajoelho, e pondero sentar-me no chão encostada à parede e abraçada aos joelhos (que para mim é a posição mais confortável para orar). Tal como na meditação, tento focar-me nas minhas sensações, mas a mente dispersa nos ruídos das tarefas que me aguardam e preciso repetir muitas vezes essas tentativas de estar presente no momento actual.

Eis senão quando… uma velhinha encontra outra velhinha amiga. Animadas, sentam-se imediatamente atrás de mim, numa igreja com capacidade para cerca de 100 pessoas sentadas. Animadas conversam, alheias à atmosfera de sossego e silêncio que se dispersa à sua volta, recheada de olhares de esguelha repletos de um “chiu” oculto. Por mais que queira não consigo deixar de prestar atenção à conversa e com todos aqueles ruídos mal tenho noção de me ter levantado num pulo para me sentar o mais afastada possível.

Respiro. Olho o relógio e tenho de ir. Encontro a amiga, que diz estar bem, que manifesta interesse por mim e pelas minhas novidades, mas rapidamente chegamos aos assuntos que temos a tratar… Bem, mais ou menos. Entre aborrecimentos e complicações, chatices e preocupações, dramas e frustrações, os problemas são mais que muitos, todos encadeados uns nos outros, sem soluções ou estratégias e numa ordem de prioridades um pouco invertida… Parece que pouco posso fazer para ajudar, pelo que me dedico mais a escutar e a tentar compreender, mesmo quando as respostas às minhas perguntas fogem aos temas e levam a diferentes questões. Os ruídos parecem ser tantos dentro daquela cabeça e coração, que só mais tarde em casa distingo o possível grito de revolta que está a querer emergir.

E as minhas noites enchem-se de sonhos e pesadelos, tão ruidosos que agradeço o estado sonâmbulo das manhãs no metro. Escolho um “sítio feliz” e concentro-me em tornar o dia de hoje cada vez mais próximo dele.

A menos que haja ruídos.
Nesse caso distraio-me, deixo o tempo levar o melhor de mim… E repito tudo outra vez.

Sexta-feira

Ao fim de vários minutos percebo que a força do hábito me levou a colocar os auriculares nos ouvidos apesar de não estar a ouvir música. Hábito manhoso necessário no trabalho, mas que o silêncio sagrado da biblioteca de São Lázaro não exige. É sexta, mas troquei o escritório por este local porque é dia (na verdade, é o fim-de-semana todo) de me dedicar à formação académica.
O que é uma tortura por um lado, por outro parece-me um bálsamo para a alma – o sossego e a calma, o respeito pelo espaço do outro, a concentração de quem se dedica aos seus ofícios.
Apesar de muitos “ses” e dúvidas concentro-me nos cruzamentos que tenho à minha frente e tomo decisões.

Sabendo hoje que há algo de que tenho a certeza.
Mesmo nos momentos em que tenho dúvidas e receios. Esses momentos servem apenas como avisos, que me fazem entender como o Amor pode ser frágil e o posso estragar se não me sentir abençoada a cada momento.
E nos outros momentos, naqueles em que sorrio mesmo estando sozinha ou quando fico com as pernas a tremer, agradeço a cada precioso evento que me conduziu aqui.

Divago em sonhos que me aguardam, lá muito no futuro.
E faço o exercício penoso de andar para trás. Se quero chegar ali, tenho de passar acolá, por isso tenho de me concentrar (dedicar, trabalhar, esforçar, etc…) aqui. E agora.

Por isso escrevo para limpar o sistema e orientar a cabeça.
Guardo no coração a companhia do almoço, que será a companhia do jantar. Mas entre uma refeição e outra, tenho aquela coisa chata para fazer. Vá, a ver se despacho isto. Se calhar é melhor escolher uma playlist. O silêncio dá-me espaço para sonhar… e eu preciso mesmo dos pés na terra.

Tom Walker – “Just You and I”
https://www.youtube.com/watch?v=fS0SyW980YI